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Lama, Rock e Saudade

Lama, Rock e Saudade
O melhor de tudo era quando os canos estouravam, o que acontecia com muita frequência. O Plano Piloto novinho, incompleto e pouco habitado ganhava enormes poças d'água que, pros meninos, eram irrecusáveis piscinas de lama vermelha. Depois de muitos catabuns dentro d'água, os garotos chegavam em casa enlameados dos cabelos às unhas do pé.

As piscinas de lama vermelha estão catalogadas na gaveta mais preciosa das lembranças de infância de Hermano Vianna, antropólogo, roteirista de televisão, irmão mais velho de Herbert, o para-lama. O pai é oficial da FAB, hoje na reserva. Por conta disso, a família morou em Brasília em duas ocasiões, entre 1963 e 1968, e entre 1972 e 1977. Dos três aos oito anos, Hermano vestiu calça curta e nadou em poça de lama do Plano Piloto.

Dos 12 aos 17, empanturrou-se de adolescência, à moda dos anos 70 - foi libertário, exagerado, experimental. Os meninos usavam cabelo parafinado e, na impossibilidade de usar as pranchas de surf, aderiram ao skate. Hermano acredita que os garotos de Brasília foram os pioneiros do skate no Brasil.

Nem bem tinha nascido, Brasília virou quartel-general do regime militar. Se hoje os do Plano Piloto só conhecem a misérias nos semáforos, naquela época nem semáforo existia. “Era muito esquisito – e foi uma lição terrível - viver cercado, na censura, longe do Brasil real e da pobreza bem isolada nas cidades-satélites".

Se era preciso livrar o país do perigo comunista, então que se fizesse uma faxina minuciosa na capital. Sem que nem por que, a polícia cercava os blocos residenciais para proteger os moradores das ameaças comunistas. De repente, uma leva de suspeitos era presa – para ser solta no dia seguinte, porque descobria-se que detidos eram filhos de autoridades.

Assistir a tudo isso tão de perto produziu na cidade uma molecada “bem doida, esperta e crítica” nas palavras de Hermano. Naqueles Anos 70 era a perfeita tradução do que Lucio Costa pretendeu com as superquadras. “Era só ‘descer’, ficar encostado numa pilastra do prédio que os amigos iam aparecendo. Era fácil andar em bando.” Quando a família Vianna mudou-se para o Rio, o ainda adolescente Hermano teve dificuldade para se adaptar às novas regras de amizade. "Uma vez, encontrei muita gente de Brasília aqui no Rio e saímos, aquela turma enorme, pela rua. Os cariocas iam se afastando pois tinham vergonha de serem vistos andando nas calçadas em bando tão grande.”

Hermano foi pro Rio e levou Brasília junto. O irmão mais velho de Herbert foi o primeiro a contar ao Brasil que na capital federal havia um rock de primeira - havia Plebe Rude, Capital Inicial e, claro, Legião Urbana. Defende Brasília "com unhas e dentes" mesmo quando ouve, pela enésima vez, a lengalenga: que é uma cidade fria, que o sonho de Niemeyer e Lucio Costa não deu certo. "As pessoas não conhecem a cidade ou apenas enxergam aquilo que querem enxergar." Lá de longe, ele continua vibrando de paixão por essa cidade tão particular. 

(Conceição Freitas - Lama, rock e saudade, 9 de março de 2004)
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